sábado, 22 de outubro de 2011

Diário Da Morte: Os Parisienses!

"Veio o verão.
Para a menina que roubava livros, tudo corria bem.
Para a mim, o céu era da cor dos judeus.

Quando seus corpos acabavam de vasculhar a porta em busca de frestas, as almas sabiam. Depois de suas unhas arranharem a madeira e, em alguns casos, ficarem cravadas nela, pela pura força do desespero, seus espíritos vinham em minha direção, para meus braços, e as instalações daqueles chuveiros, escalávamos o telhado e subíamos para a largueza segura segura da eternidade. E continuavam a me alimentar. Minuto após minuto. Chuveiro após chuveiro.
Nunca esqueci do primeiro dia em Auschwitz, da primeira vez em Mauthausen. Nesse segundo local, com o correr do tempo, fugas acabavam terrivelmente mal. Haviam corpos quebrados e meigos corações mortos. Ainda assim, era melhor do que o gás. Alguns deles eu acompanhava ainda a meio caminho da descida. Salvei você, pensava comigo mesma, segurando suas almas no ar, enquanto o resto do seu ser - suas carcaças físicas - despencava na terra. Eram todos leves, como cascas de nozes vazias. E um céu esfumaçado nesses lugares. O cheiro fazia lembrar uma fornalha mas ainda muito frio.
Estremeço ao recordar - ao tentar desrealizar aquilo.
Bafejo ar quente nas mãos, para aquecê-las.
Mas é difícil mantê-las aquecidas quando as almas ainda tiritam.
Deus.
Sempre pronuncio esse nome, ao pensar naquilo.
Deus.
Duas vezes, eu repito.
Digo o nome Dele na vã tentativa de compreender. "Mas não é sua função compreender". Essa sou eu respondendo. Deus nunca diz nada. Você acha que é a única pessoa a quem Ele nunca responde? "Sua tarefa é..." E eu paro de me escutar, porque, para dizê-lo curto e grosso, eu canso a mim mesma. Quando começo a pensar desse jeito, fico inteiramente exausta e não me dou o luxo de me entregar à fadiga. Sou obrigada a continuar, porque,  embora isso não se aplique a todas as pessoas da Terra, é verdade para a vasta maioria: a morte não espera por ninguém - e quando espera, em geral não é por muito tempo.

Em 23 de Junho de 1942 havia um grupo de judeus franceses numa prisão alemã, em solo polonês. A primeira pessoa que peguei, estava perto da porta, com a mente em disparada, depois reduzida a passadas, depois mais lenta, mais lenta...

Por favor, acredite quando lhe digo que, naquele dia, peguei cada alma como se fosse um recém-nascido. Cheguei até beijar alguns rostos exaustos, envenenados. Ouvi seus últimos gritos entrecortados. Suas palavras evanescentes. Observei suas visões de amor e os libertei de seu medo.
A todos levei embora, e se houve um momento em que precisei de distração, foi esse. Em completa desolação, olhei para o mundo lá em cima. Vi o céu transformar-se de prata em cinza e em cor de chuva. Até as nuvens tentavam fugir.
Vez por outra, eu imaginava como seria tudo acima daquelas nuvens, sabendo sem sombra de dúvida, ue o Sol era louro e a atmosfera interminável era um gigantesco olho azul.

Eles eram franceses, eram judeus, e eram você."

(P. 305/ 306 - A Menina Que Roubava Livros)

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